quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Desabafo II



Todos temos algo a esquecer.

Todos temos algo que se contorce bem lá no fundo e que revive a cada música que ouvimos na rádio, a cada lugar por onde passamos, a cada pensamento que nos surge. Algo que nos pertence como um todo e que nos embala e nos corrói, na mesma dança.


Todos temos algo a recordar.

Momentos que nos pertencem, que nos completam, que nos indicam o caminho a seguir, que nos marcam a ida e a volta.


Todos já nos perdemos dos nossos pensamentos.

Já ficamos expectantes, ansiosamente à espera. Daquele sorriso, daquele olhar, daquele abraço, daquele beijo. Momentos que tardam a chegar e muitas vezes, por mais que se espreite e se arda em desejo, nunca se evidenciam.


Todos temos algo a preservar.

Algo que não quer partir, que não está preparado para fugir, a que nos agarramos quando à noite não conseguimos dormir. Porque a verdade é que não o podemos deixar ir, não nos pertence essa vontade.


As memórias cobrem-nos o pensamento, a alma e a saudade traça-nos esse caminho.


Todos temos algo. Alguém.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Desabafo


Encosto a cabeça à terra, esperando aí ouvir um coração. Abraço o chão, esperando aí sentir o calor do teu corpo encostado ao meu. O vestido está espalhado no colorido das folhas caídas deste Outono, emprestando-lhe um pouco de negro.


Leve, suave, a chuva. Agora quero poder querer o que não posso.



segunda-feira, 24 de setembro de 2007

É tempo...



Dá-me só mais um tempo... Dá-me só esse tempo... É tempo dos meus olhos sobre os teus...

Quando se ama alguém, não se deve apenas amar quando é fácil. Não. Deve amar-se sobretudo quando é díficil, quando a pessoa objecto desse sentimento não deixa, não quer, nos empurra enquanto nos tentamos puxar. Deve amar-se mesmo quando há obstáculos, quando nos vira as costas, quando nos perdemos, quando caímos, quando quebramos. Deve amar-se mesmo quando sentimos que não somos uma prioridade, mas apenas uma opção.

Devemos amar quando tudo o resto falha, quando parece que não há mais nada depois, quando o céu nos esmaga e a terra nos engole.

Devolve-me o nosso tempo... É tempo dos meus olhos nos teus.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Desalento


A chuva precipita-se das alturas, depois de semanas suspensa nos céus. Levanta a poeira dos passeios e o cascalho das estradas.
Contorna as beiradas dos telhados e os cantos das chaminés.
Escorre pelas paredes, surpreendendo vendedores de rua, que correm a abrigar-se. Ressalta na terra endurecida pelo sol, sarando as cicatrizes desta nossa terra.
Marca todo o meu caminho para casa, roçando nas minhas pernas nuas.
Não corro. Não fujo.
Não desta vez.
Não penso. Só sinto. A chuva amolece-me as defesas e a dor, silenciosa e obscura, permanece intocável e grandiosa na sua imensidão, paralisante e absorvente. O medo calca-me e sufoca-me. O fracasso persegue-me. A desilusão enclausura-me.
A verdade é que nada mais interessa.

A chuva bate na janela, enquanto me descalço e recosto no sofá da sala. O barulho das grossas pingas, condensadas até ao seu limite, é o único que consigo suportar. Uma gota atravessa timidamente o rosto, quedando-se nos lábios. Estranhamente, sabe-me a sal. Pensei que me dissolvera na água da chuva, que me fora levada pela enxurrada, que desistira a já frágil âncora que aqui me sustinha.
Acordo. Já não chove. Pelo menos não lá fora.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Sem Título

Uma réstia de nada,
Um breve instante,
Uma mala pesada,
O caminho distante.

Uma rua apressada,
Um olhar penetrante,
Uma boca cansada.
O travo cortante.

Uma escolha ensaiada,
Um desafio errante,
Uma espera ancorada,
O frio constante.

Um dia na rua, num passo qualquer,
uma mão que se dá, um sonho se requer.
Uma chama acesa, um susurro inquieto,
um abraço sentido, um querer indiscreto.
Um desejo ansiado, uma carta aberta,
um pedaço de ti, uma mente desperta.


Uma réstia de nada?

quarta-feira, 2 de maio de 2007

O Velho


O velho sentado na poltrona de sua casa.

Memórias de outros tempos. A cama imaculadamente feita, os instrumentos de barbear impecavelmente ordenados no aparador, o sobretudo vestindo as costas do bengaleiro, o guarda-chuva guardando intrusos, os chinelos dispostos perpendiculares à mesinha de cabeceira, os retratos milimetricamente arrumados.

Ao amanhecer, raios de sol coados pelas cortinas, ao entardecer, o crepúsculo relaxa, descansando a seus pés, de madrugada, o luar penetra pela janela propositadamente aberta.
Marcas da solidão na sua barba, no seu fato de passeio, na fita do seu chapéu de domingo, na caneca pousada no lava-louças, no solitário com a sua única flor, seca, cada pétala caída à sua volta, nos seus olhos sulcados pelas rugas de quem sobreviveu demais, vivendo de menos.

Soube desde cedo. Aprumou-se no seu melhor fato, a camisa branca, a gravata azul, os botões de punho de prata, o chapéu de feltro pendendo dos dedos, e esperou. A única dúvida seria se teria sido recordado hoje, no dia em que o fim se aproximava.
As memórias que deixamos permitem-nos viver para além da finitude corpórea a que estamos todos submetidos.

A cabeça descai para o lado direito e o chapéu escorrega-lhe dos dedos. Ali permanece, ainda esperando.

O velho sentado na poltrona de sua casa.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Ainda


Abre os olhos, meu amor.
Quero rever-nos em ti, quero olhar-nos e reviver, rebuscar.


Fecha-me os olhos, meu amor.
Não quero continuar a amar-te mesmo com as costas voltadas. Como posso continuar a amar-te no silêncio da porta, no barulho ausente dos passos, nas fotografias descoloradas e envelhecidas, de tantas vezes manuseadas, nas cartas sem resposta e tantas vezes relidas. Não consigo empurrar-te enquanto me puxo.

Dias do meio entre o início e o fim. Foi aqui que estaquei, esperando alcançar-nos novamente. Não me cedas um tempo que não é teu. Não me dês um tempo que não possuis.
No revirar dos dias, no vislumbrar do teu sorriso, no recorte da tua sombra, penso e sinto o que não queria, nem podia, sentir, apesar de ainda só te ver de costas voltadas.
Quando se aprende a amar, não se pode aprender a maneira de esquecer: o meu dia de amanhã ainda pode voltar a ser teu.

terça-feira, 17 de abril de 2007

"Quem me leva os meus fantasmas?"


Todos nós temos fantasmas.


Sempre presentes em todos os momentos da nossa vida: perturbam-nos o sono, invadem-nos os sonhos, derrubam-nos durante o dia, apodrecem-nos de noite, preenchem-nos a memória, enriquecem-se com o nosso desalento, alimentam-se do desespero que nos faz temer os dias e encurtar as noites.

Esses fantasmas fazem-nos remexer bem fundo, revirar todos os momentos que queríamos ter dito sim e dissemos não, analisar todos os momentos em que nos seguramos ao que tínhamos e não procuramos o desconhecido, reviver todas as escolhas, sugando toda essa nossa força para prevalecerem.


Acima de cada um de nós.

Antes de os afugentarmos, temos que nos confrontar com eles: com a sua frieza, com o seu permanente ardil para nos fazer retroceder, com a agonia da incerteza, as reviravoltas bem dentro do nosso âmago, as mutações íntimas de todos os nossos sentidos, o desassossego no sono, a inquietude no caminho, a desconcertante jornada diária para respirarmos.
Não passam de sombras, que desaparecem com o pôr-do-sol. Ansiamos que o dia não nasça para que não voltem a surgir, serpenteando nas paredes, quebrando as nossas esquinas, coladas às nossas costas, sibilando-nos o passado, adiantando-nos desmesurada e descuidadamente os passos. Corremos, tropeçamos, caímos e aí ficamos.
As amarras que nos prendiam ao destino calculado, delineadas cautelosamente a lápis, soltam-se. Neste momento só podemos saber que a meta está sinalizada, o fim do caminho está traçado. Perguntamo-nos para quê carregar este peso amorfo.

No fundo de nós temos que reconhecer que todos precisamos destes fantasmas para saber como prosseguir, como calcorrear a estrada que a vida nos (re)abre. Erramos, aprendemos, reflectimos, continuamos. Teremos necessariamente sempre que continuar.



Desembainhem-se as espadas. Apenas nós os podemos fazer desvanecer.

terça-feira, 10 de abril de 2007

(Re)Viver-Te


Dobram os sinos.
Trocam o mundo e os passos. Trocam as voltas e os sentidos.

Os sinos repicam. Mais uma hora, menos uma hora. Mais um dia, menos um dia, que diferença faz nas reviravoltas do tempo que nos foi destinado? Passam as horas devagar, devagar demais. O tempo vai pedindo licença, já não passa sem que dê por isso.
Concedi-te um tempo maior do que o que tinha. Maior que o meu próprio tempo. E agora quedo-me na esperança do que nunca tivemos, desvaneço-me em recordações de tudo que consegui reter. Ainda choram essas memórias, expiando um desejo de retorno. Já que o meu tempo quase pára, dobrando as esquinas da saudade, imprimindo a tua imagem nos meus olhos, martelando-a na minha mente, entendo que me é permitido voltar.
Voltarei quando os sinos, pontualmente, tocarem as suas badaladas.
Apuro o ouvido. Devem estar quase. Afinal, o tempo tarda, mas soma e segue. Impreterivelmente.

A enfermeira abre a porta e gesticula, dizendo que está na hora dos medicamentos. Como não lhe respondo, toca-me no ombro. Lentamente, viro a cabeça e encaro-a. Abro os olhos e vejo o quarto, branco por todo, com uma cama ao centro e um candeeiro no tecto. A janela por onde olhava a praça e ouvia os sinos não passa de uma parede branca. Abano a cabeça. Não compreendo. Assim não vou ouvir o sino, digo-lhe. Assim não saberei quando voltar… Repito-lhe o que vi, o que senti, o que me foi dito, para que ela compreenda que me foi permitido volver. Encolhe os ombros e volta a dizer-me que está na hora da medicação. Não quero. Quero ficar acordado à espera dos sinos. Da libertação após as suas badaladas. Surge outro enfermeiro e explico-lhe o que me foi concedido: Voltar. Esboça um esgar e agarra uma seringa dentro do bolso da bata. Sinto uma picada. Arregalo os olhos e tento falar. Da minha boca não sai qualquer som. Agarro uma folha de papel e tento escrever. Da minha mão não se desenha qualquer letra ou qualquer símbolo. Gesticulam novamente, sem soltarem qualquer som, e percebo perfeitamente o que me querem dizer.
Quase a fechar os olhos, volto a ver a janela. Amanhã ouvirei os teus sinos, meu amor. Amanhã os sinos dobram por nós e é-me novamente concedido voltar.

quinta-feira, 15 de março de 2007

I



A chuva une-nos num único abraço, num único corpo. É o teu vestido que se cola a mim, as tuas mãos acariciam-me a cara molhada, os teus olhos riem com lágrimas, os teus lábios dizem “Amo-te ” em silêncio, sem necessidade de pronunciares qualquer palavra. Pegas-me numa mão e entrelaças os teus dedos nos meus, tão finos e delicados; pegas-me na outra mão e leva-la até ao teu ventre. Levanto os olhos para ti, vejo esse brilho e, num relance, percebo.
Calas-me com um beijo quente dado e recebido entre sorrisos. Só a ti beijo a sorrir. Com as mãos dadas percorremos a avenida. O vento e a chuva, longe de nos apressarem, dançam e giram à nossa volta. Pego-te ao colo e pousas as mãos no meu pescoço. A união dos elementos da natureza sela a nossa. Firmada naquele pequeno momento, silencioso de palavras, mas pleno de entendimento e comunhão.
Acaricio-te o rosto e tu, consciente desse meu gesto, sorris. Só a nós amo a sorrir.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

O Piano


Sento-me e contemplo o velho piano, agora tão solitário quanto a sala que o alberga. Na antiga Sala da Música, outrora tão repleta de sons, acordes, cantos, risos, soa um repetido e cansativo lamento, apenas sentido pelas paredes, que ainda guardam os serões de tantas sextas-feiras. Toda a casa se enchia de velhos e novos talentos, figuras mais ou menos conhecidas, conversas soltas pelos corredores, licores e charutos na sala da biblioteca.
Tu aparecias no cimo da escadaria e todos os ruídos cessavam. O bater de cada coração quase parava enquanto descias as escadas, vestida de negro, sempre de negro, com o cabelo cor de fogo caindo sobre as costas, como se qualquer barulho pudesse perturbar a tua esfera de tranquilidade tão ténue e frágil e fizesse com que te desvanecesses e desintegrasses desta nossa esfera. Nesse instante dezenas de olhares te contemplavam, acompanhando a tua descida. No fim uma mão se estendia para ti, levantavas os olhos, recebias o meu olhar e sorrias. Voltava-se a respirar fundo e os corações voltavam a palpitar, ansiosamente aguardando a música que compunha toda a tua alma e delineava as formas do teu corpo.
Sentavas-te ao piano e todo ele se encaixava em ti, como se só contigo se tornasse num instrumento completo, tomando-te de assalto. Tocavas e voltavas a tocar, a música fluía de cada poro da tua pele e penetrava em cada um dos convivas, acalentando as suas esperanças, com esse teu calor.
Quando terminavas o serão estavas esgotada, como se toda a vida te tivesse sido sugada pelos dedos. A casa recolhia ao seu silêncio, mas um silêncio preenchido, quente, tão diferente do silêncio de agora.
Acaricio o tampo do piano, como se tentasse alcançar tudo o que de ti ainda o integra. O tempo que lhe concedeste acabou por te aprisionar dentro das suas cordas, encerrando-te nesta sala.
Agora sei como é amar e desesperar por amar tanto. Vim a esta sala para me despedir de ti. Com as lágrimas a bailarem-me perigosamente nos olhos, revejo com precisão o movimento que me irá libertar. Tiro o machado e num gesto preciso e meticuloso, cravo-o no tampo do piano, juntamente com todas as lágrimas não vertidas. Ali o deixo ficar, como me deixo agora de ti. Permanecias no segredo de cada nota, no delinear de cada acorde. Agora sim, silenciei-te e libertei-me.
Viro costas e saio para enfrentar a claridade do dia.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Sino


Levanto a cabeça e encaro Seus olhos. Acusam-me, mesmo da cruz. Que perdão poderei esperar? O vitral coa a luz do sol, tornando-a vermelha como a brasa incandescente que não se apaga. Como a chama e o calor que esta noite senti bem dentro de mim.
Levanto-me, rogando para que Ele receba a minha confissão. Por minha culpa, minha tão grande culpa… Ajoelho-me uma vez mais e saio. A claridade dos raios de sol atordoam-me e o calor que o dia carrega enclausura-me dentro de mim. Uma prisão dentro de outra. Por minha culpa.
Percorro a alameda e o meu olhar prende-se nos muros do convento. O céu, mais do que azul, emana uma luz prodigiosa, quase sobrenatural. Lembro-me de mergulhar os teus olhos, de navegar a tua boca, de percorrer todos os centímetros do teu corpo, adormecer imersa em ti e acordar submersa em nós. Por minha tão grande culpa.
Hoje, o hábito pesa-me na alma, como se todo o peso do mundo estivesse confiado a estas vestes. O tecido é incendiado pela chama do meu corpo, embebido pelas labaredas incessantes que sinto no teu chamamento. Por tua culpa. E por minha culpa. Envolvemo-nos sem promessas nem limites, sem nos termos para não nos perdermos, tanto que não nos demos que não mais nos encontramos. Tão grande culpa.
Sento-me no mesmo banco de pedra, frio como o teu rosto no beijo da despedida, e abro a Bíblia, como tantas vezes fiz à procura de respostas. Quando me alcançaram, tu vieste e mudaste-me as perguntas.
Vejo alguém aproximar-se, com as vestes pretas e brancas ondulando com a brisa que empurra mais este fim de tarde. “Irmã Sara”, chama, “mais um dia que nos foi concedido, com a graça do Senhor”. “Assim é, Irmã Clara, assim é”. Os nossos vestígios inconscientes ainda presentes na minha alma desesperam a minha consciência, desafiando-a, perpetuando-a, como que à espera do necessário desenlace. Como se te carregasse comigo para a eternidade, imortalizando-te nesta minha escolha.
Está a tocar para as Vésperas. Só me resta esperar que desça sobre mim o Seu divino perdão.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

II




Toca o despertador. Estendo-me na cama porque sei que já não estás. Levanto-me e ouço as notícias sobre o tempo e o trânsito. Divago sobre o passado. Sempre o mesmo passado. Quando regresso já estou atrasado e voo para o banho. Escolho a camisa para a gravata que me deixaste na cadeira. Desço as escadas e vou tomar o pequeno-almoço. Parabéns, Sr. Dr. Estaquei nas escadas com a pasta na mão. Obrigada, Marlene.
35 anos. Parece que já vivi tanto tempo. Uma vida inteira ou farrapos de vidas várias e alheias. Só não te vivi a ti. Nem a nós.
Entro no carro, ainda mais atrasado. No caminho ouço a nossa música: “Unforgettable”. Inesquecível como só tu. Como os teus cabelos a dançar no vento, como as tuas mãos a tapar-me os olhos, como rodopiavas na areia da praia, como sorrias, como te agarravas a mim nas noites de trovoada.
Finalmente chego ao escritório. Recolho o correio, ligo o computador. Vejo a fotografia que tenho na secretária. A Serra da Estrela rendeu-se à tua figura esguia, ao teu brilho, aos teus risos límpidos que ainda por lá ecoam. Continuo a recordar o passado, episódios enevoados surgem como lapsos. Como te encontrei, como em ti me perdi, como nos perdi. 35 anos. São estes os anos que me passaram, que me viveram sem que nos vivesse.
Há anos que os relâmpagos parecem não rasgar os céus. Tantos quantos não sinto o teu abraço, acalmando-te enquanto tremias, enrolada em mim como uma concha nas ondas que a carregam até à praia. De nós nunca soube quem é se protegia, de quem é que se ocultava.
Os meus olhos já não te vêem, o meu corpo esconde-se do teu, outrora refúgio, os meus braços já te perderam a forma. Não mais te velei o sono e te guardei os sonhos. Não desistas já, meu amor, não reveles já o fim de todo o nosso caminho. Ainda há tanto para caminhar, ainda fica tanto por descobrir.
Toca o telefone. Atendo, ouço o que me dizem do outro lado, mas não compreendo. Não posso compreender. Não quero. Não. Um sabor amargo na boca. No fim, cruzaste a meta sem mim, meu amor.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

A Maré (Re)Volta


Ao longe o mar desafia-me. Aqui no escuro parece tão calmo, mas sei que algures está a preparar um ataque semelhante ao que te levou. Percorro o passadiço de madeira e enterro os pés na areia fria, sentindo cada grão entre os dedos dos pés.
Vou até lá, as ondas fazem com que molhe as calças não puxadas suficientemente para cima. Assim, ela vai dar conta. Que se lixe. Acaso já não posso amansar a alma do gigante que te arrebatou? Molho as mãos na água salgada e respiro fundo tentando aspirar partículas de ti, vindas nos salpicos das ondas.
Baixo-me e apanho uma concha. Sempre gostaste de recolher conchas, búzios e pedrinhas quando passeávamos à beira-mar ao fim do dia, quando o sol nos aconchegava as costas e te doirava a pele queimada. Esta está partida, já percorreu a sua distância, contando a sua história, entre praias, pescadores e varinas, como dizias. Também tu andas a contar a tua história nesse mar sem fim e sem retorno.
Sinto uma mão no ombro. Acordo. Afinal estive sempre parada no passadiço de madeira. Já podemos ir querida? Destravo a cadeira e assinto. Mando um beijo ao mar e estranhamente tenho a mão com sabor a sal, sabor a ti quando voltavas da faina e nos reencontrávamos nessa comunhão de membros, corpos e almas. Vamos então, afinal, nem eu nem tu vamos a lado nenhum. Pelo menos não por enquanto.

III

Olho para o relógio: 2:53. As luzes da rua penetram pela persiana meia aberta. É incrível como ainda tenho medo do escuro. Irremediavelmente penso em ti. Olho para o teu lado da cama e permanece vazio. Mais uma vez tu não estás. Como poderias estar? Soergo-me e encosto-me nas almofadas, vislumbrando o quarto ainda cheio de ti. Roupa na cadeira, maquilhagem na cómoda, fios e pulseiras espalhados, o teu livro ainda na mesinha de cabeceira. Como se voltasses ao fim do dia, com esse sorriso cansado, o saco de compras de última hora para o jantar, os livros a escaparem-te das mãos… Levanto-me e abro a gaveta da cómoda. Todas as noites tenho que voltar a ver-te, como se não bastasse ver-te no banho, nas gravatas que me escolhias, no jornal da manhã, no trânsito em hora de ponta, nas pausas para fumar um cigarro, no regresso a casa agora vazia sem ti.
3:27. A tua irmã veio cá ontem. Queria saber o que pretendo fazer com as tuas coisas. Olhei para ela sem a ver. Se te tiro assim de mim, como sei que consigo voltar a ti? Mário, já passaram quase 3 anos. Que sejam 3 ou 30, não me importa. O tempo pode não deixar de passar, mas deixou de pesar. 4:11. 4:15. 4:19. Fecho os olhos e sinto o teu perfume ainda no ar, ouço o teu riso e saboreio os teus olhos. Afinal sempre vieste descobrir-me de madrugada. Vem, eu conto-te a nossa história.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Ao Longe: o Cais




O trânsito é sempre mais intenso a esta hora. Buzinadelas, discussões, as luzes que dançam, provocando sombras estranhas nas paredes do quarto. Tenho medo das sombras, medo que me façam viver tudo outra vez, já que deixar de recordar é manifestamente impossível. Viro-me para o outro lado para não as encarar e toco a campainha. Ninguém. Ouço um som no corredor. Alguém abre a porta e espreita. Fecho os olhos fingindo que durmo, afinal não a quero ver. As sombras já tomaram conta de mim. E é então que tudo relampeja na minha memória: o embate, os sons, a escuridão em que mergulhamos, a chuva molhando-me a cara, o sal penetrando na pele, o frio como mil agulhas rasgando os músculos, perdi os sentidos e perdi-me de ti.
Estremeço e abro os olhos. Sinto-a presente. E é então que a encaro. Recordo-me quando a vi pela primeira vez naquele cais. Uma figura alta e esguia, com o impermeável laranja, quase engolida pela tempestade. O vento esvoaçava-lhe os cabelos, um pouco de sol naquele dia tão cinzento. Estendeu-me um impermeável e deu-me o braço, quase dobrados em dois pela força do vendaval. Temos que esperar que descarreguem o barco. Uma carrinha funerária já está à espera.
Entramos no carro e só aí lhe vi os olhos vazios de qualquer expressão. Não é fácil encarar este regresso. Também para mim não é fácil voltar. Não desta maneira. Rodamos pela estrada e tenho todo o tempo para voltar a pensar no discurso tantas vezes repetido. E só agora me apercebo que não há palavras para lho dizer. Os olhos dela prendem-se no espelho retrovisor. Quer certificar-se que a carrinha nos segue. Parece velar mais por ele agora do que em toda a sua vida. O silêncio acompanha-nos uma vez mais. Já não há mais risos nem confidências cúmplices.
Chegamos, estaciona perto da falésia. Perto de mais. Saímos do carro para ajudar a carregar o caixão vazio de corpo. Parece que carregamos o peso do mundo. Num instante tudo acaba: a madeira desfaz-se de encontro às pedras aguçadas e mergulha naquele mar que o levou sem um suspiro. Ponho a mão no bolso e sinto o maço de cartas escritas ao longo de todos os dias que tivemos longe e que nunca enviei. Esqueci-me do tempo e quando volto, ela ainda ali está. À espera. Continuou sempre à minha espera. Talvez hoje seja o dia para lhe contar. Afinal, as cartas ainda estão no meu bolso.

E assim começa...


Inicio este meu pequeno espaço, não sem fazer uma prévia advertência: este espaço durará o tempo que me for concedido pela inspiração.