quarta-feira, 16 de julho de 2008

[Sette]



O sol já vai alto quando a fadiga me permite despertar desse torpor, dorido no corpo, na alma e exausto pelas investidas das recordações e pelos desacertos da vida.
Tantos planos tinha para a nossa vida, que nem contei com os planos que a vida poderia ter para nós.
Olho em volta e vejo-te na mesa da cozinha, com bigodes de leite, a molhar as bolachas na caneca, o leite derramado na mesa; vejo as marcas da tua altura, que medíamos todos os meses e marcávamos no vão da porta; vejo os teus lápis de cor espalhados pela mesa da salinha, com um desenho meio acabado; vejo-te a descer as escadas aos sábados de madrugada para veres os teus desenhos animados preferidos; ouço as tuas risadas, as tuas perguntas, os teus porquês.
Não consigo suportar a tua ausência. Não quero ter que sentir mais saudade. Não posso permitir.
Com um sorriso a aflorar os lábios, aceito a vitória que a vida me está a oferecer, apesar de me ter derrotado em várias batalhas. Dou uma última mirada àquele espaço que, no passado, tanto me completou e que, agora, parece vazio de vida e desço à garagem. Sempre a sorrir. Sempre me disseram que tinhas o meu sorriso.

Os vizinhos, alarmados pelas ausências, pelos jornais acumulados na porta da frente, arrombaram o portão da garagem. Os pés, com a movimentação brusca de ar, giram muito lentamente, sob o peso do corpo que pende do tecto.
Ouvem-se sussurros, comentários em voz baixa e grave, terminando o silêncio estranhamente pacífico e até acolhedor daquele lugar, agora que a sua luta silenciosa findou. Estão perante um homem que parece mais desperto, mais vivo com a sua caminhada agonizante, que há muito anunciava o seu fim, do que algum dia o esteve depois do dia do acidente. Um peso inquantificável recaía sobre os seus ombros, impedia-o de levantar os olhos do chão, de sorrir, de prosseguir, preso nas malhas sufocantes da sua culpa.
Agora, na curva da morte, a escolha do seu fim faz, finalmente, cessar a dor de uma perda intolerável, deixa-o repousar, e acabar assim a sua história, um final escrito com um sorriso a iluminar o seu rosto.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

[Sei]


Deixo cair a garrafa vazia. O quarto gira sem parar e sento-me no chão, encostado à cama. Procuro no álcool a paz que não poderei nunca alcançar e, apesar de o saber, não deixo de o procurar, sedento.
Papá. Pai. Pai! Só te ouvi à terceira, embrenhado no projecto de uma urbanização, com o prazo mesmo a terminar.
Guilherme, que foi, querido? Estás a chorar? Que se passa? Continua a chorar sem dizer mais nada. Foi um pesadelo? Anda, vamos voltar para a caminha.
Contas-me uma história?
Olho para o relógio, penso no trabalho que ainda me falta, a estender-se pela noite dentro. Olho para ti e para a tua cara assustada e acedo. Sim, mas tem que ser uma pequenina, ‘tá bem? O papá ainda tem que vir trabalhar.

Acordo sobressaltado, a garrafa vazia solta-se da minha mão e rebola até à porta. Inevitavelmente penso em todos os momentos em que estive demasiado ocupado, em todos os momentos em que tive prazos para cumprir, em todos os momentos em que não te vivi. A tua cara surge de cada vez que fecho os olhos, como se estivesse imprimida permanentemente nas minhas pupilas.
Desço até à cozinha e procuro uma garrafa de vodka. Sei que tem que estar aqui uma, algures. Tem que estar. Nada. Vou até à garrafeira na sala. Nada.
Só encontro uns restos em garrafas espalhadas, que vou juntando numa religiosamente, sem desperdiçar uma única gota. Cada gole amacia-me a raiva, mas não apaga a memória daquele dia. Do dia em que te perdi. Em cada dia volto a reviver o passado, como se em todos os dias voltasse tudo ao mesmo. Em todos os dias te perco e volto a perder.

O som de uma bola a bater na estrada molhada, o som de uma travagem brusca, o som do embate do teu corpo em cima do carro. Do meu carro. O som do grito que saía da minha boca. Saio do carro e vejo-te estendido na rua, um fio de sangue a escorrer da tua boca. Papá!
Schhhh, fica quietinho Guilherme. Alguém chame o 112, por favor!
Papá, porque ‘tás a chorar? ‘Tás zangado comigo? Foi a bola…
Schhhh, Guilherme, não fales, ‘tá quietinho, ‘tá bem? O papá não ‘tá zangado contigo, querido.
Conta-me uma história.
‘Tá bem, querido. Eu conto-te uma história.
Tem que ser pequenina?
Não, querido. Desta vez podes escolher a história que quiseres, a maior de todas.


As lágrimas caem-me livremente. Noto a garrafa vazia e atiro-a para um canto.
Os raios de sol mostram-se timidamente pelas persianas da sala. A penumbra dá lugar à claridade do novo dia.
Sem força para me levantar, ali fico, recordando cada palavra da mais longa história que um dia te contei. Nunca a cheguei a acabar. Pensei que enquanto não a acabasse não te poderia perder.
Talvez hoje seja o dia para te contar o fim.

terça-feira, 8 de julho de 2008

[Cinque]



Acabei por adormecer na tua cama, mais perto de ti. Acordo com um grito mudo. Terá sido só mais um sonho? Soergo-me num cotovelo e situo-me. O luar penetra pela janela aberta e ilumina o espaço, emprestando-lhe uma aura algo fantasmagórica.
Não foi só mais um sonho. Foi real.
Levanto-me agoniado e corro para a casa de banho. Molho a cara com água fria e estaco perante o espelho. O meu olhar cruza-se comigo e repugna-me. Como consegues encarar-te, ouço-o dizer. Olho para trás e verifico que estou sozinho. Aliás, como sempre tenho estado, desde que partiste. Desde que te fiz partir.
Fixo o meu olhar no espelho e novamente o ouço a perguntar como me posso permitir permanecer, como me posso permitir ficar. A imagem reflectida no espelho aponta para mim e sussurra Foste tu.
Cala-te.
Escorrego para o chão e ali fico, joelhos junto ao peito, embalando-me, murmurando perdões. Perdoa-me.
Assassino. CALA-TE!
Num rompante levanto-me e encaro-me. Fecho o punho e num único golpe parto o espelho. Os vidros estilhaçam-se com o impacto. O sangue desponta e corre livremente. Sorrio. Mereço a dor, quero a dor, preciso da dor.
Cem pares de olhos fitam-me através do espelho partido. Todos com a mesma expressão silenciosa: Culpado.

Sem me importar com a mão ferida, volto ao teu quarto e deito-me na tua cama. Mais perto de ti. Com os joelhos junto ao peito, murmuro canções de embalar até que o cansaço me deixa render a mais um sono sem sonhos.