terça-feira, 29 de maio de 2007

Desalento


A chuva precipita-se das alturas, depois de semanas suspensa nos céus. Levanta a poeira dos passeios e o cascalho das estradas.
Contorna as beiradas dos telhados e os cantos das chaminés.
Escorre pelas paredes, surpreendendo vendedores de rua, que correm a abrigar-se. Ressalta na terra endurecida pelo sol, sarando as cicatrizes desta nossa terra.
Marca todo o meu caminho para casa, roçando nas minhas pernas nuas.
Não corro. Não fujo.
Não desta vez.
Não penso. Só sinto. A chuva amolece-me as defesas e a dor, silenciosa e obscura, permanece intocável e grandiosa na sua imensidão, paralisante e absorvente. O medo calca-me e sufoca-me. O fracasso persegue-me. A desilusão enclausura-me.
A verdade é que nada mais interessa.

A chuva bate na janela, enquanto me descalço e recosto no sofá da sala. O barulho das grossas pingas, condensadas até ao seu limite, é o único que consigo suportar. Uma gota atravessa timidamente o rosto, quedando-se nos lábios. Estranhamente, sabe-me a sal. Pensei que me dissolvera na água da chuva, que me fora levada pela enxurrada, que desistira a já frágil âncora que aqui me sustinha.
Acordo. Já não chove. Pelo menos não lá fora.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Sem Título

Uma réstia de nada,
Um breve instante,
Uma mala pesada,
O caminho distante.

Uma rua apressada,
Um olhar penetrante,
Uma boca cansada.
O travo cortante.

Uma escolha ensaiada,
Um desafio errante,
Uma espera ancorada,
O frio constante.

Um dia na rua, num passo qualquer,
uma mão que se dá, um sonho se requer.
Uma chama acesa, um susurro inquieto,
um abraço sentido, um querer indiscreto.
Um desejo ansiado, uma carta aberta,
um pedaço de ti, uma mente desperta.


Uma réstia de nada?

quarta-feira, 2 de maio de 2007

O Velho


O velho sentado na poltrona de sua casa.

Memórias de outros tempos. A cama imaculadamente feita, os instrumentos de barbear impecavelmente ordenados no aparador, o sobretudo vestindo as costas do bengaleiro, o guarda-chuva guardando intrusos, os chinelos dispostos perpendiculares à mesinha de cabeceira, os retratos milimetricamente arrumados.

Ao amanhecer, raios de sol coados pelas cortinas, ao entardecer, o crepúsculo relaxa, descansando a seus pés, de madrugada, o luar penetra pela janela propositadamente aberta.
Marcas da solidão na sua barba, no seu fato de passeio, na fita do seu chapéu de domingo, na caneca pousada no lava-louças, no solitário com a sua única flor, seca, cada pétala caída à sua volta, nos seus olhos sulcados pelas rugas de quem sobreviveu demais, vivendo de menos.

Soube desde cedo. Aprumou-se no seu melhor fato, a camisa branca, a gravata azul, os botões de punho de prata, o chapéu de feltro pendendo dos dedos, e esperou. A única dúvida seria se teria sido recordado hoje, no dia em que o fim se aproximava.
As memórias que deixamos permitem-nos viver para além da finitude corpórea a que estamos todos submetidos.

A cabeça descai para o lado direito e o chapéu escorrega-lhe dos dedos. Ali permanece, ainda esperando.

O velho sentado na poltrona de sua casa.