quinta-feira, 26 de abril de 2007

Ainda


Abre os olhos, meu amor.
Quero rever-nos em ti, quero olhar-nos e reviver, rebuscar.


Fecha-me os olhos, meu amor.
Não quero continuar a amar-te mesmo com as costas voltadas. Como posso continuar a amar-te no silêncio da porta, no barulho ausente dos passos, nas fotografias descoloradas e envelhecidas, de tantas vezes manuseadas, nas cartas sem resposta e tantas vezes relidas. Não consigo empurrar-te enquanto me puxo.

Dias do meio entre o início e o fim. Foi aqui que estaquei, esperando alcançar-nos novamente. Não me cedas um tempo que não é teu. Não me dês um tempo que não possuis.
No revirar dos dias, no vislumbrar do teu sorriso, no recorte da tua sombra, penso e sinto o que não queria, nem podia, sentir, apesar de ainda só te ver de costas voltadas.
Quando se aprende a amar, não se pode aprender a maneira de esquecer: o meu dia de amanhã ainda pode voltar a ser teu.

terça-feira, 17 de abril de 2007

"Quem me leva os meus fantasmas?"


Todos nós temos fantasmas.


Sempre presentes em todos os momentos da nossa vida: perturbam-nos o sono, invadem-nos os sonhos, derrubam-nos durante o dia, apodrecem-nos de noite, preenchem-nos a memória, enriquecem-se com o nosso desalento, alimentam-se do desespero que nos faz temer os dias e encurtar as noites.

Esses fantasmas fazem-nos remexer bem fundo, revirar todos os momentos que queríamos ter dito sim e dissemos não, analisar todos os momentos em que nos seguramos ao que tínhamos e não procuramos o desconhecido, reviver todas as escolhas, sugando toda essa nossa força para prevalecerem.


Acima de cada um de nós.

Antes de os afugentarmos, temos que nos confrontar com eles: com a sua frieza, com o seu permanente ardil para nos fazer retroceder, com a agonia da incerteza, as reviravoltas bem dentro do nosso âmago, as mutações íntimas de todos os nossos sentidos, o desassossego no sono, a inquietude no caminho, a desconcertante jornada diária para respirarmos.
Não passam de sombras, que desaparecem com o pôr-do-sol. Ansiamos que o dia não nasça para que não voltem a surgir, serpenteando nas paredes, quebrando as nossas esquinas, coladas às nossas costas, sibilando-nos o passado, adiantando-nos desmesurada e descuidadamente os passos. Corremos, tropeçamos, caímos e aí ficamos.
As amarras que nos prendiam ao destino calculado, delineadas cautelosamente a lápis, soltam-se. Neste momento só podemos saber que a meta está sinalizada, o fim do caminho está traçado. Perguntamo-nos para quê carregar este peso amorfo.

No fundo de nós temos que reconhecer que todos precisamos destes fantasmas para saber como prosseguir, como calcorrear a estrada que a vida nos (re)abre. Erramos, aprendemos, reflectimos, continuamos. Teremos necessariamente sempre que continuar.



Desembainhem-se as espadas. Apenas nós os podemos fazer desvanecer.

terça-feira, 10 de abril de 2007

(Re)Viver-Te


Dobram os sinos.
Trocam o mundo e os passos. Trocam as voltas e os sentidos.

Os sinos repicam. Mais uma hora, menos uma hora. Mais um dia, menos um dia, que diferença faz nas reviravoltas do tempo que nos foi destinado? Passam as horas devagar, devagar demais. O tempo vai pedindo licença, já não passa sem que dê por isso.
Concedi-te um tempo maior do que o que tinha. Maior que o meu próprio tempo. E agora quedo-me na esperança do que nunca tivemos, desvaneço-me em recordações de tudo que consegui reter. Ainda choram essas memórias, expiando um desejo de retorno. Já que o meu tempo quase pára, dobrando as esquinas da saudade, imprimindo a tua imagem nos meus olhos, martelando-a na minha mente, entendo que me é permitido voltar.
Voltarei quando os sinos, pontualmente, tocarem as suas badaladas.
Apuro o ouvido. Devem estar quase. Afinal, o tempo tarda, mas soma e segue. Impreterivelmente.

A enfermeira abre a porta e gesticula, dizendo que está na hora dos medicamentos. Como não lhe respondo, toca-me no ombro. Lentamente, viro a cabeça e encaro-a. Abro os olhos e vejo o quarto, branco por todo, com uma cama ao centro e um candeeiro no tecto. A janela por onde olhava a praça e ouvia os sinos não passa de uma parede branca. Abano a cabeça. Não compreendo. Assim não vou ouvir o sino, digo-lhe. Assim não saberei quando voltar… Repito-lhe o que vi, o que senti, o que me foi dito, para que ela compreenda que me foi permitido volver. Encolhe os ombros e volta a dizer-me que está na hora da medicação. Não quero. Quero ficar acordado à espera dos sinos. Da libertação após as suas badaladas. Surge outro enfermeiro e explico-lhe o que me foi concedido: Voltar. Esboça um esgar e agarra uma seringa dentro do bolso da bata. Sinto uma picada. Arregalo os olhos e tento falar. Da minha boca não sai qualquer som. Agarro uma folha de papel e tento escrever. Da minha mão não se desenha qualquer letra ou qualquer símbolo. Gesticulam novamente, sem soltarem qualquer som, e percebo perfeitamente o que me querem dizer.
Quase a fechar os olhos, volto a ver a janela. Amanhã ouvirei os teus sinos, meu amor. Amanhã os sinos dobram por nós e é-me novamente concedido voltar.