quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O Lago



O lago, ao longe, tão calmo e pacífico, esconde-se debaixo de uma capa negra espessa e impossível de desvendar.
Não consigo descobrir-te se passas o tempo a esconder-te.

Olho o meu reflexo na janela da sala, salpicada pelas gotas da chuva, pensando em como me permito querer estar contigo apesar dessa escuridão.
Não consigo desvendar-te se a cada momento amontoas segredos.

Não consigo permanecer se insistes em desvanecer.

Nem o sol, com todo o seu vigor, consegue penetrar mais do que uns poucos metros da superfície estática daquela massa de água, tão serena e ao mesmo tempo tão revolta nas suas profundezas.

Não consigo aproximar-me se persistes em afastar-te.

Não consigo encontrar-te se insistes em te perder.

Não consigo acompanhar-te se queres caminhar só.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Tudo e Nada



Uma estrela cadente deixa o seu rasto brilhante no céu negro, polvilhado de outros pequenos pontos brilhantes. Levanto a cabeça e vejo que ainda existe céu.
Uma réstia de brilho ilumina uma lágrima que rola livremente pelo meu rosto. As palavras continuam a ecoar na minha cabeça. Conquistar. Dominar. Libertar. Prender. Ganhar. Perder.
Assento os pés no chão e sinto que ainda existe terra.

A estrela já passou, fugaz no seu aparecimento, lesta na sua fuga. Aparecer. Desaparecer.
O seu trilho foi traçado desde o início, mas o seu fim surgiu mais rápido do que se poderia prever.
Presa na sua própria passagem. Livre na sua retirada.

Seremos todos tentados a procurá-la uma vez mais, varrendo os céus com o olhar, como quem quer voltar a acreditar que algum dia lá esteve. Olhamos, mas não vemos; se vemos, não reparamos.

Cegamente e com os sentidos entorpecidos, perdemos o rumo e só resta vaguear por todos os caminhos que entretanto surgem, procurando o que deixamos que se perdesse. Só pedi para me aprenderes.

Tão perto e tão longe. Tanto e tão pouco.
Acordo e ainda sinto.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

[Sette]



O sol já vai alto quando a fadiga me permite despertar desse torpor, dorido no corpo, na alma e exausto pelas investidas das recordações e pelos desacertos da vida.
Tantos planos tinha para a nossa vida, que nem contei com os planos que a vida poderia ter para nós.
Olho em volta e vejo-te na mesa da cozinha, com bigodes de leite, a molhar as bolachas na caneca, o leite derramado na mesa; vejo as marcas da tua altura, que medíamos todos os meses e marcávamos no vão da porta; vejo os teus lápis de cor espalhados pela mesa da salinha, com um desenho meio acabado; vejo-te a descer as escadas aos sábados de madrugada para veres os teus desenhos animados preferidos; ouço as tuas risadas, as tuas perguntas, os teus porquês.
Não consigo suportar a tua ausência. Não quero ter que sentir mais saudade. Não posso permitir.
Com um sorriso a aflorar os lábios, aceito a vitória que a vida me está a oferecer, apesar de me ter derrotado em várias batalhas. Dou uma última mirada àquele espaço que, no passado, tanto me completou e que, agora, parece vazio de vida e desço à garagem. Sempre a sorrir. Sempre me disseram que tinhas o meu sorriso.

Os vizinhos, alarmados pelas ausências, pelos jornais acumulados na porta da frente, arrombaram o portão da garagem. Os pés, com a movimentação brusca de ar, giram muito lentamente, sob o peso do corpo que pende do tecto.
Ouvem-se sussurros, comentários em voz baixa e grave, terminando o silêncio estranhamente pacífico e até acolhedor daquele lugar, agora que a sua luta silenciosa findou. Estão perante um homem que parece mais desperto, mais vivo com a sua caminhada agonizante, que há muito anunciava o seu fim, do que algum dia o esteve depois do dia do acidente. Um peso inquantificável recaía sobre os seus ombros, impedia-o de levantar os olhos do chão, de sorrir, de prosseguir, preso nas malhas sufocantes da sua culpa.
Agora, na curva da morte, a escolha do seu fim faz, finalmente, cessar a dor de uma perda intolerável, deixa-o repousar, e acabar assim a sua história, um final escrito com um sorriso a iluminar o seu rosto.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

[Sei]


Deixo cair a garrafa vazia. O quarto gira sem parar e sento-me no chão, encostado à cama. Procuro no álcool a paz que não poderei nunca alcançar e, apesar de o saber, não deixo de o procurar, sedento.
Papá. Pai. Pai! Só te ouvi à terceira, embrenhado no projecto de uma urbanização, com o prazo mesmo a terminar.
Guilherme, que foi, querido? Estás a chorar? Que se passa? Continua a chorar sem dizer mais nada. Foi um pesadelo? Anda, vamos voltar para a caminha.
Contas-me uma história?
Olho para o relógio, penso no trabalho que ainda me falta, a estender-se pela noite dentro. Olho para ti e para a tua cara assustada e acedo. Sim, mas tem que ser uma pequenina, ‘tá bem? O papá ainda tem que vir trabalhar.

Acordo sobressaltado, a garrafa vazia solta-se da minha mão e rebola até à porta. Inevitavelmente penso em todos os momentos em que estive demasiado ocupado, em todos os momentos em que tive prazos para cumprir, em todos os momentos em que não te vivi. A tua cara surge de cada vez que fecho os olhos, como se estivesse imprimida permanentemente nas minhas pupilas.
Desço até à cozinha e procuro uma garrafa de vodka. Sei que tem que estar aqui uma, algures. Tem que estar. Nada. Vou até à garrafeira na sala. Nada.
Só encontro uns restos em garrafas espalhadas, que vou juntando numa religiosamente, sem desperdiçar uma única gota. Cada gole amacia-me a raiva, mas não apaga a memória daquele dia. Do dia em que te perdi. Em cada dia volto a reviver o passado, como se em todos os dias voltasse tudo ao mesmo. Em todos os dias te perco e volto a perder.

O som de uma bola a bater na estrada molhada, o som de uma travagem brusca, o som do embate do teu corpo em cima do carro. Do meu carro. O som do grito que saía da minha boca. Saio do carro e vejo-te estendido na rua, um fio de sangue a escorrer da tua boca. Papá!
Schhhh, fica quietinho Guilherme. Alguém chame o 112, por favor!
Papá, porque ‘tás a chorar? ‘Tás zangado comigo? Foi a bola…
Schhhh, Guilherme, não fales, ‘tá quietinho, ‘tá bem? O papá não ‘tá zangado contigo, querido.
Conta-me uma história.
‘Tá bem, querido. Eu conto-te uma história.
Tem que ser pequenina?
Não, querido. Desta vez podes escolher a história que quiseres, a maior de todas.


As lágrimas caem-me livremente. Noto a garrafa vazia e atiro-a para um canto.
Os raios de sol mostram-se timidamente pelas persianas da sala. A penumbra dá lugar à claridade do novo dia.
Sem força para me levantar, ali fico, recordando cada palavra da mais longa história que um dia te contei. Nunca a cheguei a acabar. Pensei que enquanto não a acabasse não te poderia perder.
Talvez hoje seja o dia para te contar o fim.

terça-feira, 8 de julho de 2008

[Cinque]



Acabei por adormecer na tua cama, mais perto de ti. Acordo com um grito mudo. Terá sido só mais um sonho? Soergo-me num cotovelo e situo-me. O luar penetra pela janela aberta e ilumina o espaço, emprestando-lhe uma aura algo fantasmagórica.
Não foi só mais um sonho. Foi real.
Levanto-me agoniado e corro para a casa de banho. Molho a cara com água fria e estaco perante o espelho. O meu olhar cruza-se comigo e repugna-me. Como consegues encarar-te, ouço-o dizer. Olho para trás e verifico que estou sozinho. Aliás, como sempre tenho estado, desde que partiste. Desde que te fiz partir.
Fixo o meu olhar no espelho e novamente o ouço a perguntar como me posso permitir permanecer, como me posso permitir ficar. A imagem reflectida no espelho aponta para mim e sussurra Foste tu.
Cala-te.
Escorrego para o chão e ali fico, joelhos junto ao peito, embalando-me, murmurando perdões. Perdoa-me.
Assassino. CALA-TE!
Num rompante levanto-me e encaro-me. Fecho o punho e num único golpe parto o espelho. Os vidros estilhaçam-se com o impacto. O sangue desponta e corre livremente. Sorrio. Mereço a dor, quero a dor, preciso da dor.
Cem pares de olhos fitam-me através do espelho partido. Todos com a mesma expressão silenciosa: Culpado.

Sem me importar com a mão ferida, volto ao teu quarto e deito-me na tua cama. Mais perto de ti. Com os joelhos junto ao peito, murmuro canções de embalar até que o cansaço me deixa render a mais um sono sem sonhos.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

[Quattro]



Volto a casa. Ponho a chaleira ao lume para fazer um chá. Olho para o meu recanto de trabalho e relembro-me do projecto que tinha em mãos e no qual nunca mais trabalhei. Folhas rabiscadas, com medidas, desenhos de perspectivas e alçados preenchem quase toda a mesa. Entre elas duas folhas, com traços a castanho. O projecto da casa da árvore e o da casota do cão que sempre quiseste ter. O teu sétimo aniversário estava próximo. Falavas a todo tempo do que querias fazer: convidar os amigos, os avós, os primos, os vizinhos, o tipo de bolo, se podia haver um palhaço. E sempre te respondia que ainda faltava tanto tempo. Mas, no fim, o tempo foi o que nos faltou.
Pego nos desenhos e vou até ao teu quarto. Vazio de ti. Os cadernos meios dentro, meios fora da mochila, um convite para uma festa de aniversário de um colega de escola, os calções da natação. Parecia mesmo que tinhas acabado de chegar a casa.
O som de uma bola a bater na estrada molhada. O som de uma travagem repentina. O som do embate. Inevitável. Ouço outra vez aquele maldito barulho. Está encerrado dentro do meu silêncio.
Vou até à janela, com a mesma sensação de não querer olhar. No meu íntimo, senti aquele embate, soube o que ia encontrar.
Fecho os olhos. Aquele som… A bola a bater no chão molhado. A travagem repentina. Eram reais.
Abro os olhos. Na rua estava tudo silencioso.
Ao longe ouço um apito contínuo, conhecido, mas insistente, que me desperta deste torpor. Desço as escadas e lembro-me da chaleira que ficou ao lume. Entro na cozinha, vou ao armário e automaticamente tiro duas canecas do armário. Sirvo o chá e deito duas colheres de açúcar em cada. Aposto que, mesmo assim, vais achar pouco doce, mas acabas por te ir habituando ao sabor. Pego nas canecas e levo-as para a varanda da cozinha.

Recomeçou a chover. Sento-me na cadeira de verga e tapo-me com a manta. Os pingos de chuva tamborilam nos vidros das janelas.
Passou uma, duas, três horas. Agora, aos poucos, já durmo. Tantas noites passadas com os olhos vigilantes, os ouvidos atentos, buscando no escuro e no silêncio a resposta que ecoava em todo o meu redor. Procurava a resposta certa, mas com a pergunta errada. Só te via a ti, ali na estrada, sem que nada pudesse fazer.
Já escureceu. Pego nas duas canecas e fecho a porta da varanda.
Mais um dia passado, mais uma noite à espreita. O silêncio instalado em casa já não me pesa e não me atormenta. Pelo contrário. Agora já sei as perguntas a fazer.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

[Tre]



A chuva não pára de cair. O vento fustiga as árvores. Nem reparo no mau tempo. No meu coração é sempre Inverno.
Vou buscar o carro e parto sem destino. De pensamento vazio, vagueio, às voltas com as curvas da vida.
Ando, ando, ando, qual autómato dirigido aleatoriamente pelas ruas da cidade. Quando dou conta, o carro parou. Olho para o lado e vejo o cemitério, escuro e frio. Estranhamente, é o sítio onde sinto mais calor, mais proximidade, mais familiaridade. Os meus passos guiam-me, certos e vigorosos. Sem vacilar. Como se soubessem, desde o momento em que saí de casa, onde quero ir. Paro em frente de uma campa branca, com girassóis e malmequeres nos vasos. Um pouco de sol naquele dia cinzento.
Um pouco de paz na luta desenfreada que travo dentro de mim, sem possibilidade de tréguas, sem capacidade para reconhecer o inimigo que me ocupou a alma. A culpa como outra face de mim.
Arranjo automaticamente as flores, sacudo as pétalas caídas. Como se cumprisse um ritual.
Ainda não consegui deixar de me perguntar o porquê e como é que não te tenho perto de mim; como consigo permanecer quando já nada me prende aqui; como me permito sobreviver sem ti.
Trouxe de casa a bola perdida e pouso-a: como sempre reencontraste-a. E a mim quem me ajuda a reencontrar-te?
Parou de chover. Talvez já tenha parado há algum tempo. Os meus sentidos estão entorpecidos pela perda. Nada mais lhes é permitido sentir, pensar, querer.
No meu coração vai ser sempre Inverno.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

[Due]




Acabei por adormecer, com todos os sonhos já sonhados. A bola escorregou-me das mãos. Quanto tempo terei passado assim? Desde quando me prendo nas pequenas coisas e a vida fluí sem que me aperceba?
Levanto-me para ir apanhar a bola; pode ser que o seu dono apareça a perguntar por ela. Se fosse o Guilherme não descansava enquanto não a encontrasse. E ele encontrava-a sempre. Até lhe desenhou as iniciais do nome para a distinguir das outras. Olho para o cesto de basquetebol em cima do portão da garagem e revejo-o a lançar cestos, arriscando a distância. “Pai, jogas comigo hoje? Vá lá, só uns cestos…”, perguntava ele, sempre que lhe buzinava para conseguir estacionar o carro na garagem.
Às vezes jogava, outras vezes não. Maldito trabalho, malditos prazos, maldito telemóvel, maldito, maldito, maldito…

Sem lágrimas para chorar, com a culpa embargada na garganta, entro em casa. Vou arrumar a bola na garagem. Olho para a terceira prateleira e passo os dedos na etiqueta “Guilherme”. Lembro-me bem daquele dia: decidimos escolher uma prateleira para cada um e ele cismou que queria ser ele a escrever a etiqueta dele. Muito compenetrado, pega nos marcadores e escreve uma letra de cada cor.
Parece estar tudo exactamente igual: os carrinhos, os patins, os jogos antigos. Deixo a bola num canto e é quando a pouso que reparo em duas letras escritas a preto: G. M. Sinto-me desfalecer. Nunca devo ter reparado na bola; ela ali ficou, até ao dia de hoje. Mas aquele barulho… A bola a bater no chão molhado… Era real.

Sento-me no chão. Talvez seja a altura.
Abro o portão da garagem e lanço umas bolas. O barulho não é o mesmo. E como poderia ser? Pego na escada e desmonto o cesto.
A chuva escorre-me pela cara. A culpa assume uma nova forma, um novo contorno.

terça-feira, 15 de abril de 2008

[Uno]


O som de uma bola a bater na estrada molhada. Depois nada. Ninguém. Da ombreira da porta vejo a bola que ficou esquecida perto da sebe do jardim. Ponho o capuz e vou buscá-la. Olho em volta e a rua está deserta.
Como eu, com a sombra por companhia.

Sento-me nos degraus da entrada. Agora até a sombra me abandonou. Outra vez aquele maldito barulho encerrado dentro do meu silêncio. Cresce, preenche-me e, ao mesmo tempo, esvazia-me.

Como no dia em que te perdi.