segunda-feira, 14 de julho de 2008

[Sei]


Deixo cair a garrafa vazia. O quarto gira sem parar e sento-me no chão, encostado à cama. Procuro no álcool a paz que não poderei nunca alcançar e, apesar de o saber, não deixo de o procurar, sedento.
Papá. Pai. Pai! Só te ouvi à terceira, embrenhado no projecto de uma urbanização, com o prazo mesmo a terminar.
Guilherme, que foi, querido? Estás a chorar? Que se passa? Continua a chorar sem dizer mais nada. Foi um pesadelo? Anda, vamos voltar para a caminha.
Contas-me uma história?
Olho para o relógio, penso no trabalho que ainda me falta, a estender-se pela noite dentro. Olho para ti e para a tua cara assustada e acedo. Sim, mas tem que ser uma pequenina, ‘tá bem? O papá ainda tem que vir trabalhar.

Acordo sobressaltado, a garrafa vazia solta-se da minha mão e rebola até à porta. Inevitavelmente penso em todos os momentos em que estive demasiado ocupado, em todos os momentos em que tive prazos para cumprir, em todos os momentos em que não te vivi. A tua cara surge de cada vez que fecho os olhos, como se estivesse imprimida permanentemente nas minhas pupilas.
Desço até à cozinha e procuro uma garrafa de vodka. Sei que tem que estar aqui uma, algures. Tem que estar. Nada. Vou até à garrafeira na sala. Nada.
Só encontro uns restos em garrafas espalhadas, que vou juntando numa religiosamente, sem desperdiçar uma única gota. Cada gole amacia-me a raiva, mas não apaga a memória daquele dia. Do dia em que te perdi. Em cada dia volto a reviver o passado, como se em todos os dias voltasse tudo ao mesmo. Em todos os dias te perco e volto a perder.

O som de uma bola a bater na estrada molhada, o som de uma travagem brusca, o som do embate do teu corpo em cima do carro. Do meu carro. O som do grito que saía da minha boca. Saio do carro e vejo-te estendido na rua, um fio de sangue a escorrer da tua boca. Papá!
Schhhh, fica quietinho Guilherme. Alguém chame o 112, por favor!
Papá, porque ‘tás a chorar? ‘Tás zangado comigo? Foi a bola…
Schhhh, Guilherme, não fales, ‘tá quietinho, ‘tá bem? O papá não ‘tá zangado contigo, querido.
Conta-me uma história.
‘Tá bem, querido. Eu conto-te uma história.
Tem que ser pequenina?
Não, querido. Desta vez podes escolher a história que quiseres, a maior de todas.


As lágrimas caem-me livremente. Noto a garrafa vazia e atiro-a para um canto.
Os raios de sol mostram-se timidamente pelas persianas da sala. A penumbra dá lugar à claridade do novo dia.
Sem força para me levantar, ali fico, recordando cada palavra da mais longa história que um dia te contei. Nunca a cheguei a acabar. Pensei que enquanto não a acabasse não te poderia perder.
Talvez hoje seja o dia para te contar o fim.

1 comentário:

Anónimo disse...

Lindo!!!