quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

O Piano


Sento-me e contemplo o velho piano, agora tão solitário quanto a sala que o alberga. Na antiga Sala da Música, outrora tão repleta de sons, acordes, cantos, risos, soa um repetido e cansativo lamento, apenas sentido pelas paredes, que ainda guardam os serões de tantas sextas-feiras. Toda a casa se enchia de velhos e novos talentos, figuras mais ou menos conhecidas, conversas soltas pelos corredores, licores e charutos na sala da biblioteca.
Tu aparecias no cimo da escadaria e todos os ruídos cessavam. O bater de cada coração quase parava enquanto descias as escadas, vestida de negro, sempre de negro, com o cabelo cor de fogo caindo sobre as costas, como se qualquer barulho pudesse perturbar a tua esfera de tranquilidade tão ténue e frágil e fizesse com que te desvanecesses e desintegrasses desta nossa esfera. Nesse instante dezenas de olhares te contemplavam, acompanhando a tua descida. No fim uma mão se estendia para ti, levantavas os olhos, recebias o meu olhar e sorrias. Voltava-se a respirar fundo e os corações voltavam a palpitar, ansiosamente aguardando a música que compunha toda a tua alma e delineava as formas do teu corpo.
Sentavas-te ao piano e todo ele se encaixava em ti, como se só contigo se tornasse num instrumento completo, tomando-te de assalto. Tocavas e voltavas a tocar, a música fluía de cada poro da tua pele e penetrava em cada um dos convivas, acalentando as suas esperanças, com esse teu calor.
Quando terminavas o serão estavas esgotada, como se toda a vida te tivesse sido sugada pelos dedos. A casa recolhia ao seu silêncio, mas um silêncio preenchido, quente, tão diferente do silêncio de agora.
Acaricio o tampo do piano, como se tentasse alcançar tudo o que de ti ainda o integra. O tempo que lhe concedeste acabou por te aprisionar dentro das suas cordas, encerrando-te nesta sala.
Agora sei como é amar e desesperar por amar tanto. Vim a esta sala para me despedir de ti. Com as lágrimas a bailarem-me perigosamente nos olhos, revejo com precisão o movimento que me irá libertar. Tiro o machado e num gesto preciso e meticuloso, cravo-o no tampo do piano, juntamente com todas as lágrimas não vertidas. Ali o deixo ficar, como me deixo agora de ti. Permanecias no segredo de cada nota, no delinear de cada acorde. Agora sim, silenciei-te e libertei-me.
Viro costas e saio para enfrentar a claridade do dia.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Sino


Levanto a cabeça e encaro Seus olhos. Acusam-me, mesmo da cruz. Que perdão poderei esperar? O vitral coa a luz do sol, tornando-a vermelha como a brasa incandescente que não se apaga. Como a chama e o calor que esta noite senti bem dentro de mim.
Levanto-me, rogando para que Ele receba a minha confissão. Por minha culpa, minha tão grande culpa… Ajoelho-me uma vez mais e saio. A claridade dos raios de sol atordoam-me e o calor que o dia carrega enclausura-me dentro de mim. Uma prisão dentro de outra. Por minha culpa.
Percorro a alameda e o meu olhar prende-se nos muros do convento. O céu, mais do que azul, emana uma luz prodigiosa, quase sobrenatural. Lembro-me de mergulhar os teus olhos, de navegar a tua boca, de percorrer todos os centímetros do teu corpo, adormecer imersa em ti e acordar submersa em nós. Por minha tão grande culpa.
Hoje, o hábito pesa-me na alma, como se todo o peso do mundo estivesse confiado a estas vestes. O tecido é incendiado pela chama do meu corpo, embebido pelas labaredas incessantes que sinto no teu chamamento. Por tua culpa. E por minha culpa. Envolvemo-nos sem promessas nem limites, sem nos termos para não nos perdermos, tanto que não nos demos que não mais nos encontramos. Tão grande culpa.
Sento-me no mesmo banco de pedra, frio como o teu rosto no beijo da despedida, e abro a Bíblia, como tantas vezes fiz à procura de respostas. Quando me alcançaram, tu vieste e mudaste-me as perguntas.
Vejo alguém aproximar-se, com as vestes pretas e brancas ondulando com a brisa que empurra mais este fim de tarde. “Irmã Sara”, chama, “mais um dia que nos foi concedido, com a graça do Senhor”. “Assim é, Irmã Clara, assim é”. Os nossos vestígios inconscientes ainda presentes na minha alma desesperam a minha consciência, desafiando-a, perpetuando-a, como que à espera do necessário desenlace. Como se te carregasse comigo para a eternidade, imortalizando-te nesta minha escolha.
Está a tocar para as Vésperas. Só me resta esperar que desça sobre mim o Seu divino perdão.