quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

II




Toca o despertador. Estendo-me na cama porque sei que já não estás. Levanto-me e ouço as notícias sobre o tempo e o trânsito. Divago sobre o passado. Sempre o mesmo passado. Quando regresso já estou atrasado e voo para o banho. Escolho a camisa para a gravata que me deixaste na cadeira. Desço as escadas e vou tomar o pequeno-almoço. Parabéns, Sr. Dr. Estaquei nas escadas com a pasta na mão. Obrigada, Marlene.
35 anos. Parece que já vivi tanto tempo. Uma vida inteira ou farrapos de vidas várias e alheias. Só não te vivi a ti. Nem a nós.
Entro no carro, ainda mais atrasado. No caminho ouço a nossa música: “Unforgettable”. Inesquecível como só tu. Como os teus cabelos a dançar no vento, como as tuas mãos a tapar-me os olhos, como rodopiavas na areia da praia, como sorrias, como te agarravas a mim nas noites de trovoada.
Finalmente chego ao escritório. Recolho o correio, ligo o computador. Vejo a fotografia que tenho na secretária. A Serra da Estrela rendeu-se à tua figura esguia, ao teu brilho, aos teus risos límpidos que ainda por lá ecoam. Continuo a recordar o passado, episódios enevoados surgem como lapsos. Como te encontrei, como em ti me perdi, como nos perdi. 35 anos. São estes os anos que me passaram, que me viveram sem que nos vivesse.
Há anos que os relâmpagos parecem não rasgar os céus. Tantos quantos não sinto o teu abraço, acalmando-te enquanto tremias, enrolada em mim como uma concha nas ondas que a carregam até à praia. De nós nunca soube quem é se protegia, de quem é que se ocultava.
Os meus olhos já não te vêem, o meu corpo esconde-se do teu, outrora refúgio, os meus braços já te perderam a forma. Não mais te velei o sono e te guardei os sonhos. Não desistas já, meu amor, não reveles já o fim de todo o nosso caminho. Ainda há tanto para caminhar, ainda fica tanto por descobrir.
Toca o telefone. Atendo, ouço o que me dizem do outro lado, mas não compreendo. Não posso compreender. Não quero. Não. Um sabor amargo na boca. No fim, cruzaste a meta sem mim, meu amor.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

A Maré (Re)Volta


Ao longe o mar desafia-me. Aqui no escuro parece tão calmo, mas sei que algures está a preparar um ataque semelhante ao que te levou. Percorro o passadiço de madeira e enterro os pés na areia fria, sentindo cada grão entre os dedos dos pés.
Vou até lá, as ondas fazem com que molhe as calças não puxadas suficientemente para cima. Assim, ela vai dar conta. Que se lixe. Acaso já não posso amansar a alma do gigante que te arrebatou? Molho as mãos na água salgada e respiro fundo tentando aspirar partículas de ti, vindas nos salpicos das ondas.
Baixo-me e apanho uma concha. Sempre gostaste de recolher conchas, búzios e pedrinhas quando passeávamos à beira-mar ao fim do dia, quando o sol nos aconchegava as costas e te doirava a pele queimada. Esta está partida, já percorreu a sua distância, contando a sua história, entre praias, pescadores e varinas, como dizias. Também tu andas a contar a tua história nesse mar sem fim e sem retorno.
Sinto uma mão no ombro. Acordo. Afinal estive sempre parada no passadiço de madeira. Já podemos ir querida? Destravo a cadeira e assinto. Mando um beijo ao mar e estranhamente tenho a mão com sabor a sal, sabor a ti quando voltavas da faina e nos reencontrávamos nessa comunhão de membros, corpos e almas. Vamos então, afinal, nem eu nem tu vamos a lado nenhum. Pelo menos não por enquanto.

III

Olho para o relógio: 2:53. As luzes da rua penetram pela persiana meia aberta. É incrível como ainda tenho medo do escuro. Irremediavelmente penso em ti. Olho para o teu lado da cama e permanece vazio. Mais uma vez tu não estás. Como poderias estar? Soergo-me e encosto-me nas almofadas, vislumbrando o quarto ainda cheio de ti. Roupa na cadeira, maquilhagem na cómoda, fios e pulseiras espalhados, o teu livro ainda na mesinha de cabeceira. Como se voltasses ao fim do dia, com esse sorriso cansado, o saco de compras de última hora para o jantar, os livros a escaparem-te das mãos… Levanto-me e abro a gaveta da cómoda. Todas as noites tenho que voltar a ver-te, como se não bastasse ver-te no banho, nas gravatas que me escolhias, no jornal da manhã, no trânsito em hora de ponta, nas pausas para fumar um cigarro, no regresso a casa agora vazia sem ti.
3:27. A tua irmã veio cá ontem. Queria saber o que pretendo fazer com as tuas coisas. Olhei para ela sem a ver. Se te tiro assim de mim, como sei que consigo voltar a ti? Mário, já passaram quase 3 anos. Que sejam 3 ou 30, não me importa. O tempo pode não deixar de passar, mas deixou de pesar. 4:11. 4:15. 4:19. Fecho os olhos e sinto o teu perfume ainda no ar, ouço o teu riso e saboreio os teus olhos. Afinal sempre vieste descobrir-me de madrugada. Vem, eu conto-te a nossa história.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Ao Longe: o Cais




O trânsito é sempre mais intenso a esta hora. Buzinadelas, discussões, as luzes que dançam, provocando sombras estranhas nas paredes do quarto. Tenho medo das sombras, medo que me façam viver tudo outra vez, já que deixar de recordar é manifestamente impossível. Viro-me para o outro lado para não as encarar e toco a campainha. Ninguém. Ouço um som no corredor. Alguém abre a porta e espreita. Fecho os olhos fingindo que durmo, afinal não a quero ver. As sombras já tomaram conta de mim. E é então que tudo relampeja na minha memória: o embate, os sons, a escuridão em que mergulhamos, a chuva molhando-me a cara, o sal penetrando na pele, o frio como mil agulhas rasgando os músculos, perdi os sentidos e perdi-me de ti.
Estremeço e abro os olhos. Sinto-a presente. E é então que a encaro. Recordo-me quando a vi pela primeira vez naquele cais. Uma figura alta e esguia, com o impermeável laranja, quase engolida pela tempestade. O vento esvoaçava-lhe os cabelos, um pouco de sol naquele dia tão cinzento. Estendeu-me um impermeável e deu-me o braço, quase dobrados em dois pela força do vendaval. Temos que esperar que descarreguem o barco. Uma carrinha funerária já está à espera.
Entramos no carro e só aí lhe vi os olhos vazios de qualquer expressão. Não é fácil encarar este regresso. Também para mim não é fácil voltar. Não desta maneira. Rodamos pela estrada e tenho todo o tempo para voltar a pensar no discurso tantas vezes repetido. E só agora me apercebo que não há palavras para lho dizer. Os olhos dela prendem-se no espelho retrovisor. Quer certificar-se que a carrinha nos segue. Parece velar mais por ele agora do que em toda a sua vida. O silêncio acompanha-nos uma vez mais. Já não há mais risos nem confidências cúmplices.
Chegamos, estaciona perto da falésia. Perto de mais. Saímos do carro para ajudar a carregar o caixão vazio de corpo. Parece que carregamos o peso do mundo. Num instante tudo acaba: a madeira desfaz-se de encontro às pedras aguçadas e mergulha naquele mar que o levou sem um suspiro. Ponho a mão no bolso e sinto o maço de cartas escritas ao longo de todos os dias que tivemos longe e que nunca enviei. Esqueci-me do tempo e quando volto, ela ainda ali está. À espera. Continuou sempre à minha espera. Talvez hoje seja o dia para lhe contar. Afinal, as cartas ainda estão no meu bolso.

E assim começa...


Inicio este meu pequeno espaço, não sem fazer uma prévia advertência: este espaço durará o tempo que me for concedido pela inspiração.