terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Ao Longe: o Cais




O trânsito é sempre mais intenso a esta hora. Buzinadelas, discussões, as luzes que dançam, provocando sombras estranhas nas paredes do quarto. Tenho medo das sombras, medo que me façam viver tudo outra vez, já que deixar de recordar é manifestamente impossível. Viro-me para o outro lado para não as encarar e toco a campainha. Ninguém. Ouço um som no corredor. Alguém abre a porta e espreita. Fecho os olhos fingindo que durmo, afinal não a quero ver. As sombras já tomaram conta de mim. E é então que tudo relampeja na minha memória: o embate, os sons, a escuridão em que mergulhamos, a chuva molhando-me a cara, o sal penetrando na pele, o frio como mil agulhas rasgando os músculos, perdi os sentidos e perdi-me de ti.
Estremeço e abro os olhos. Sinto-a presente. E é então que a encaro. Recordo-me quando a vi pela primeira vez naquele cais. Uma figura alta e esguia, com o impermeável laranja, quase engolida pela tempestade. O vento esvoaçava-lhe os cabelos, um pouco de sol naquele dia tão cinzento. Estendeu-me um impermeável e deu-me o braço, quase dobrados em dois pela força do vendaval. Temos que esperar que descarreguem o barco. Uma carrinha funerária já está à espera.
Entramos no carro e só aí lhe vi os olhos vazios de qualquer expressão. Não é fácil encarar este regresso. Também para mim não é fácil voltar. Não desta maneira. Rodamos pela estrada e tenho todo o tempo para voltar a pensar no discurso tantas vezes repetido. E só agora me apercebo que não há palavras para lho dizer. Os olhos dela prendem-se no espelho retrovisor. Quer certificar-se que a carrinha nos segue. Parece velar mais por ele agora do que em toda a sua vida. O silêncio acompanha-nos uma vez mais. Já não há mais risos nem confidências cúmplices.
Chegamos, estaciona perto da falésia. Perto de mais. Saímos do carro para ajudar a carregar o caixão vazio de corpo. Parece que carregamos o peso do mundo. Num instante tudo acaba: a madeira desfaz-se de encontro às pedras aguçadas e mergulha naquele mar que o levou sem um suspiro. Ponho a mão no bolso e sinto o maço de cartas escritas ao longo de todos os dias que tivemos longe e que nunca enviei. Esqueci-me do tempo e quando volto, ela ainda ali está. À espera. Continuou sempre à minha espera. Talvez hoje seja o dia para lhe contar. Afinal, as cartas ainda estão no meu bolso.

3 comentários:

C disse...

Os meus parabéns pelo blog!! Lá perdeste o medo, e começaste bem :)

Anónimo disse...

Este ja discuti ctg. Beijinho, Vais no bom caminho

Anónimo disse...

temos aqui um sinaleiro