quarta-feira, 23 de abril de 2008

[Quattro]



Volto a casa. Ponho a chaleira ao lume para fazer um chá. Olho para o meu recanto de trabalho e relembro-me do projecto que tinha em mãos e no qual nunca mais trabalhei. Folhas rabiscadas, com medidas, desenhos de perspectivas e alçados preenchem quase toda a mesa. Entre elas duas folhas, com traços a castanho. O projecto da casa da árvore e o da casota do cão que sempre quiseste ter. O teu sétimo aniversário estava próximo. Falavas a todo tempo do que querias fazer: convidar os amigos, os avós, os primos, os vizinhos, o tipo de bolo, se podia haver um palhaço. E sempre te respondia que ainda faltava tanto tempo. Mas, no fim, o tempo foi o que nos faltou.
Pego nos desenhos e vou até ao teu quarto. Vazio de ti. Os cadernos meios dentro, meios fora da mochila, um convite para uma festa de aniversário de um colega de escola, os calções da natação. Parecia mesmo que tinhas acabado de chegar a casa.
O som de uma bola a bater na estrada molhada. O som de uma travagem repentina. O som do embate. Inevitável. Ouço outra vez aquele maldito barulho. Está encerrado dentro do meu silêncio.
Vou até à janela, com a mesma sensação de não querer olhar. No meu íntimo, senti aquele embate, soube o que ia encontrar.
Fecho os olhos. Aquele som… A bola a bater no chão molhado. A travagem repentina. Eram reais.
Abro os olhos. Na rua estava tudo silencioso.
Ao longe ouço um apito contínuo, conhecido, mas insistente, que me desperta deste torpor. Desço as escadas e lembro-me da chaleira que ficou ao lume. Entro na cozinha, vou ao armário e automaticamente tiro duas canecas do armário. Sirvo o chá e deito duas colheres de açúcar em cada. Aposto que, mesmo assim, vais achar pouco doce, mas acabas por te ir habituando ao sabor. Pego nas canecas e levo-as para a varanda da cozinha.

Recomeçou a chover. Sento-me na cadeira de verga e tapo-me com a manta. Os pingos de chuva tamborilam nos vidros das janelas.
Passou uma, duas, três horas. Agora, aos poucos, já durmo. Tantas noites passadas com os olhos vigilantes, os ouvidos atentos, buscando no escuro e no silêncio a resposta que ecoava em todo o meu redor. Procurava a resposta certa, mas com a pergunta errada. Só te via a ti, ali na estrada, sem que nada pudesse fazer.
Já escureceu. Pego nas duas canecas e fecho a porta da varanda.
Mais um dia passado, mais uma noite à espreita. O silêncio instalado em casa já não me pesa e não me atormenta. Pelo contrário. Agora já sei as perguntas a fazer.

1 comentário:

Anónimo disse...

clap clap clap !!

Este foi o meu capitulo preferido...so far! adorei a forma como está escrito numa mistura entre o que se passou e o presente :P